Por Erica Riera | 10/08/2023 ás 09h00 | Atualizado 04/08/2023 ás 06h37

9min de leitura

Desvendando o Agile Procurement – Parte 2

Desvendando o Agile Procurement – Parte 2

Conhecendo o Manifesto Ágil

O Manifesto Ágil (Agile Manifesto) foi criado em fevereiro de 2001, durante uma reunião realizada em uma estação de esqui em Utah, Estados Unidos. Essa reunião foi um encontro entre 17 especialistas em desenvolvimento de software, representando diferentes abordagens e metodologias, como Extreme Programming (XP), Scrum, DSDM, Crystal, entre outras.

Os motivos que levaram à criação do Manifesto Ágil foram uma insatisfação generalizada com os métodos tradicionais de desenvolvimento de software, conhecidos como "métodos pesados" (waterfall, em inglês), que eram caracterizados por processos rígidos e burocráticos. Esses métodos frequentemente resultavam em projetos lentos, com pouca adaptação às mudanças e com dificuldades em entregar valor ao cliente.

Os especialistas compartilhavam a crença de que era necessária uma abordagem mais flexível, colaborativa e adaptativa para o desenvolvimento de software, que pudesse se adequar melhor às necessidades do cliente e ao ambiente de negócios em constante mudança. Eles buscavam uma maneira de lidar com a incerteza inerente aos projetos de software, promovendo a entrega de valor de forma mais rápida e eficiente.

Aqui é possível reconhecer as semelhanças dos problemas encontrados no desenvolvimento de softwares com os processos atuais das áreas de Compras e vinculá-los ao momento pelo qual as empresas estão passando.

Assim, durante essa reunião histórica, eles concordaram em criar o Manifesto Ágil, que consiste em quatro valores fundamentais:

Indivíduos e interações acima de processos e ferramentas.

Software em funcionamento acima de documentação abrangente.

Colaboração com o cliente acima de negociação de contratos.

Responder a mudanças acima de seguir um plano.

Esses valores fundamentais foram seguidos por doze princípios ágeis que detalham a abordagem a ser adotada. O Manifesto Ágil rapidamente ganhou popularidade e se tornou a base para várias metodologias ágeis, como Scrum, Kanban e XP, que são amplamente utilizadas no desenvolvimento de software e em outras áreas do conhecimento atualmente. Sua adoção permitiu que as equipes de desenvolvimento se tornassem mais adaptáveis, colaborativas e focadas em agregar valor aos clientes de forma mais eficiente.

Adaptando o Manifesto Ágil à Compras:

Antes de começarmos, alguns esclarecimentos importantes:

a) Ser Ágil (com letra maiúscula) ou Agile não se resume a ser “rapidinho”!

b) Sabemos que os conceitos que virão a seguir não se aplicam à todas as aquisições, como por exemplo, compras de itens que hoje já se consideram transacionais a menos de que por algum motivo em específico (o temido: “a fábrica parou!”) precisem de um atendimento personalizado. Estamos falando de contratos “feitos sob demanda” basicamente, mas não exclusivamente;

c) Também é FUNDAMENTAL que todos os envolvidos sejam corretos em suas intenções e trabalhem pelo mesmo objetivo que é o de fazer sua empresa prosperar e atender seus clientes externos, conforme o descrito no início da Parte 1. Requisitantes que apresentem desvios devem ser corrigidos;

d) Sabemos que savings sempre serão a principal meta de Compras e em nenhum momento diremos que não. Estamos trazendo situações que tornem o comportamento da área de Compras mais estratégica.

Atendidos estes quatro pontos, vamos lá:

  1. Indivíduos e interações mais que processos e ferramentas:

Esse é meu ponto favorito, eu poderia falar dos resultados de aplicá-lo por muitas horas.

Ou seja, o comprador deve entender qual é a necessidade de cada aquisição com o seu respectivo cliente interno. Os processos e ferramentas existem para atender as pessoas, respectivos representantes de suas áreas e da empresa, e não o contrário.

A partir daí, a área de compras deve atender ao que é necessário e específico como, por exemplo (não vamos tratar de estratégias para aumentar savings aqui, justamente para exemplificar a necessidade de se entender as demandas):

  • Existem aquisições cujo foco não é comprar por menos não importe o tempo que leve em vários rounds de negociação, mas sim atender um prazo agressivo devido a uma entrega ao cliente final ou até atendimento de um requisito regulatório que podem, inclusive, gerar multas ou problemas de imagem se não forem atendidos;
  • A depender do momento pelo qual a empresa está passando, o objetivo principal pode ser uma melhor negociação da forma de pagamento, mesmo que isso reduza os savings (aumentar o prazo de pagamento pode inibir o desconto). Ou o contrário, pode-se considerar alguma flexibilidade na forma de pagamento se o prazo de entrega for encurtado e esta for a necessidade;
  • Em compras de itens com implementação ou instalação, entender o orçamento da área requisitante quanto a Opex e Capex pode ajudar a desenhar o formato de contratação;
  • É importante entender o futuro do que se está comprando pois o tempo de contratação depende disso. Negociar um contrato mais curto tendo em vista uma necessidade de mudança a médio prazo pode reduzir os savings que um contrato mais longo traria.

Existe uma variedade enorme de situações que precisam ser ouvidas de forma genuína e aberta e que gerem a discussão conjunta de possíveis soluções antes de se sair com a RFX já que talvez precisem ser detalhadas no material a ser enviado.

Esse entendimento também ajudará o comprador a estabelecer uma melhor estratégia de negociação pois saberá de antemão onde forcar seus esforços.

Processos conduzidos desta forma são mais robustos e trazem resultados para todos os envolvidos, inclusive financeiros já que por “financeiros” existem várias linhas além dos savings, e geram uma melhor experiência e qualidade de entrega para os requisitantes. Estes, por sua vez, passarão a enxergar em Compras um aliado que deve sempre ser incluído nos processos desde o seu início reduzindo significantemente alguns dos problemas que sempre reclamamos.

  • Documentação exigida deve ser da qualidade e quantidade certas*:

Esse é um tema complexo, pois voltamos no ponto mencionado anteriormente sobre o motivo de Compras ter se tornado o “elefante branco” que se tornou.

Como falamos antes, historicamente, os processos de Compras foram se adequando para mitigar problemas acontecidos naquela empresa ou em outras, mas que pela atualização de sistemas e ERPs já estão sob controle - mas as documentações continuam a ser solicitadas sempre pensando em uma potencial exceção.

O que eu costumo dizer em algumas palestras é: “É necessário garantir que a documentação exigida seja da qualidade e quantidade certas para grupos de entregas. Se você vai viajar para a praia, não vai levar blusas de lã e cachecol, se vai para o frio, não vai levar roupa de praia.”

Dividir as aquisições em grupos de risco, clusterizando as demandas e fornecedores (dividindo em grupos em que os elementos sejam similares), o processo fica mais assertivo. Ou seja, nem todas as aquisições têm o mesmo grau de risco e devem pedir ou exigir o mesmo volume de documentação.

Esse foi um ponto que se tornou muito evidente com a chegada das start-ups. Até hoje muitas empresas se vêm impedidas de contratá-las ou perdidas em lidar com elas pois não conseguem adaptar o nível de documentação disponível ao seu processo super robusto de Compliance.

* Texto original: Software em funcionamento mais que documentação abrangente

3) Colaboração com o fornecedor mais que negociação de contratos*

Esse é um assunto que me parece um pouco menos controverso já que hoje já se fala muito em colaboração, aprender com o fornecedor ou sobre negociações do tipo ganha-ganha, mas que também exige bastante maturidade de ambas as partes e dos departamentos jurídicos.

O ponto é que muitas vezes um acordo colaborativo com o fornecedor e a procura por soluções conjuntas, que atendam a ambos, é mais produtiva do que brigas por cláusulas contratuais que muitas vezes nem a nossa própria empresa aceitaria assinar se estivesse no lado oposto da mesa.

A exemplo de outras questões jurídicas, os contratos devem ser escritos de forma a perpetuar o que foi acordado e não para serem usados como ferramenta de disputa e que comumente alguns compradores usam como “ameaça” caso alguma coisa não aconteça como previsto.

Sim, os contratos devem ser cumpridos, é um fato, mas lembre-se que falamos aqui de comportamento, de postura e de maturidade e esse tipo de atitude prejudica o relacionamento, futuros acordos, o atendimento desta ou de futuras necessidades.

A pandemia nos mostrou um lado interessante deste processo pois durante a falta de materiais muitos fornecedores priorizaram clientes com quem tinham melhores relacionamentos, o que não significava ter os maiores preços. Mas clientes que os tratavam com respeito e profissionalismo antes da pandemia.

Resumindo, a colaboração entre as partes deve ser priorizada em vez de apenas buscar a negociação de contratos.

* Texto original: Colaboração com o cliente mais que negociação de contratos

4) Responder a mudanças mais que seguir um plano

Tal qual nos itens anteriores, o entendimento das necessidades e da construção do que se está contratando através das interações com os fornecedores e requisitantes que participam do processo é fundamental para o perfeito atendimento da demanda.

Hoje muito se fala que as decisões e ações deve ser equalitárias e não igualitárias. Diferente de se ter um processo estanque, seguindo um processo pré-determinado e igual para todas as demandas, é necessário estar preparado para responder a mudanças com flexibilidade, conhecimento e maturidade, em vez de insistir em seguir um plano ou processo pré-determinado que não trará os mesmos resultados pois não atende as especificidades daquela aquisição.

Lembro de uma vez, discutindo os processos com um auditor (na verdade recebi este questionamento várias vezes durante a minha vida em Compras), ele me perguntou: por que você não faz sempre 3 rounds de negociação? Não deveria ser um processo padrão? Isso é ser igualitário e definitivamente não traz os melhores resultados! E se eu fizer um round inicial e mais um round com target? E se eu fizer 4 rounds? O comprador vai adaptar sua estratégia de negociação àquela necessidade de forma a trazer os melhores resultados: financeiros, de entrega, qualitativos etc.



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